A crise institucional na Feira Permanente do Guará atingiu um novo patamar de gravidade. Além das omissões administrativas e da criação de estruturas paralelas sem respaldo legal, novas denúncias apontam possível desvio de finalidade no uso de recursos arrecadados dos feirantes, aprofundando o colapso financeiro da entidade legalmente reconhecida e colocando, de forma concreta, salários e postos de trabalho em risco.
A Associação do Comércio Varejista dos Feirantes do Guará (Ascofeg), entidade reconhecida por lei como representante local, sustenta que a atuação do Governo do Distrito Federal (GDF) deixou de ser apenas omissa para se tornar indutora direta de um cenário de caos administrativo, social e trabalhista dentro da feira.
Recursos da feira sob suspeita
Segundo informações repassadas por representantes da Ascofeg, a associação paralela estimulada pela gestão pública — identificada como ASFEG — estaria deixando de repassar recursos arrecadados para despesas essenciais da feira, como manutenção, limpeza e, sobretudo, o pagamento de funcionários.
Em vez disso, os valores estariam sendo utilizados para a compra de bicicletas elétricas destinadas a sorteios, prática que, se confirmada, caracteriza desvio de finalidade e afronta direta à função social da arrecadação obrigatória prevista em decreto distrital. Para a Ascofeg, trata-se de um símbolo claro da inversão de prioridades: enquanto trabalhadores ficam sem salário, recursos públicos e privados são usados para ações promocionais.
Funcionários denunciam atraso salarial e descaso
A gravidade da situação foi explicitada em uma nota pública divulgada pelos próprios funcionários da Feira em grupos internos de feirantes. No comunicado, os trabalhadores relatam atraso recorrente de salários e atribuem diretamente o problema à determinação do gerente da Feira do Guará, Thiago Falcomer Vieira Damasceno, para que os pagamentos fossem direcionados à Associação paralela.
No texto, os funcionários afirmam estar cansados de tanto descaso e relatam que, apesar da dedicação diária, deixaram de receber seus salários de forma digna desde a mudança na destinação dos recursos. O comunicado deixa evidente o esgotamento da categoria e a ruptura da confiança mínima necessária para o funcionamento da feira.
Como forma de reação, os trabalhadores anunciaram medidas que expõem o grau de deterioração da gestão do espaço. Segundo a nota, a manutenção básica da feira será mantida, mas serviços como a troca de lonas passarão a ser restritos aos feirantes que contribuem com a Ascofeg. A retirada de lixo seguirá ocorrendo, porém com prioridade para aqueles que mantêm o pagamento regular à entidade legalmente reconhecida.
Na prática, a feira passa a operar sob um regime informal de exceção, em que o acesso a serviços básicos depende da filiação ou pagamento a determinada entidade — um retrato do caos institucional criado pela interferência estatal indevida.
Gestão paralela e responsabilidade direta do Estado
Esses novos fatos se somam à denúncia já protocolada no Ministério Público do Trabalho (MPT), NF 004660.2025.10.000/0 que aponta a criação ilegal de um Comitê Gestor da Feira do Guará e o reconhecimento informal de uma associação sem legitimidade jurídica, em afronta direta à Lei Distrital nº 6.956/2021.
A insistência da Administração Regional do Guará e da Secretaria Executiva de Cidades em ignorar a legislação, ofícios formais e alertas reiterados deixa de ser mera falha administrativa e passa a configurar responsabilidade direta pelos danos sociais e trabalhistas em curso.
O Estado como agente da precarização
Ao permitir que recursos sejam desviados de sua finalidade, ao tolerar atrasos salariais e ao estimular a fragmentação institucional, o GDF passa a atuar como agente ativo da precarização do trabalho. O poder público, que deveria garantir legalidade, estabilidade e proteção social, torna-se parte central do problema.
O caso revela uma contradição profunda: enquanto o governo promove discursos sobre ordenamento urbano e gestão eficiente, na Feira do Guará imperam improviso, informalidade e desrespeito a direitos básicos.
Diante do agravamento dos fatos, cresce a expectativa sobre a atuação do Ministério Público do Trabalho. A denúncia agora envolve não apenas omissões administrativas, mas impactos diretos e imediatos sobre salários, serviços essenciais e a dignidade dos trabalhadores.
A situação exige investigação rigorosa, responsabilização de agentes públicos e interrupção de práticas que violam frontalmente o dever constitucional do Estado de proteger o trabalho e a dignidade humana.
Um alerta para além do Guará
O que ocorre na Feira Permanente do Guará não é um caso isolado, mas um alerta sobre os riscos de uma gestão pública que relativiza a lei, fragiliza representações legítimas e trata trabalhadores como peças descartáveis. Quando o Estado falha — ou escolhe falhar — o custo recai sempre sobre quem vive do trabalho.
O desfecho desse caso dirá muito sobre até onde vai a tolerância institucional com a ilegalidade e quem, de fato, paga o preço das omissões do poder público no Distrito Federal.




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